O Brave New World,
That has such people in’t!!! Miranda em A Tempestade, de Shakespeare
A concepção da ilha de Utopia está toda enraizada em duas idéias: a não existência da propriedade privada é a primeira. A segunda é o alcance dos interesses individuais, entendido como apenas viável, se feito através do preenchimento prévio das necessidades coletivas. Esses conceitos são centrais na obra. Todo os outros elementos do funcionamento tanto dos costumes, quanto da cultura, como do governo são diretamente ligados a esses pontos. O autor vê a propriedade privada como a essência das mazelas do homem. Podemos entender como propriedade privada a desigualdade material, e se refere muito mais a propriedade privada como vemos hoje, do que à concentração de riquezas por direito de posse, como no caso da nobreza européia tradicional. Da mesma forma, a necessidade de ver a sociedade como um conjunto e de subordinar os interesses individuais aos coletivos são a única maneira de alcançar prosperidade e progresso. |
A descrição da ilha é feita com base numa comparação com a Inglaterra do seu tempo, que tem uma função de negativo. É perfeitamente possível entender Utopia como uma anti-Inglaterra. A Inglaterra de More não é mais medieval, os valores não são mais exatamente os da nobreza, embora muito ainda reste dessa época. A singularidade da Inglaterra, onde a nobreza mais cedo começou a perder poder, permite entender o porque é tão forte a crítica de More à propriedade privada. Na sociedade inglesa a essa época já era tênue a linha que distingue burguesia e nobreza. Era muito fácil a ascensão à nobreza de um burguês rico ou a um nobre adquirir as práticas de um burguês. A revolta de More contra o dinheiro, a moeda, contra a desigualdade material e concentração de riquezas e contra a propriedade da terra, que já não é entendida por ele como direito natural de posse, demonstra o quanto já era acelerado na Inglaterra esse processo em direção ao capitalismo. Não são os valores medievais que More critica, são os que mais tarde serão chamados de valores burgueses. A Inglaterra de seu tempo, pelo que ele demonstra, já apresentava algumas distorções sociais e injustiças que são inerentes ao capitalismo.
Na época de More, a terra era a principal fonte de riqueza e trazia consigo também poder político e status. Na Inglaterra, ela já era considerada uma mercadoria e a nobreza inglesa estava num processo em que cada vez mais passaria a pensar como a burguesia, isto é, empresarialmente. As enclosures que fazem parte desse processo de transformação da terra em propriedade privada e, por conseqüência, mercadoria, vão resultar na necessidade dos camponeses assalariarem-se e aqueles que até então conseguiram produzir para si, nas terras comunais, vão tornar a ser explorados por um grupo de proprietários. E é dessa forma que é entendido o trabalho por More. Para ele, se há escassez de alimentos e desigualdade, é porque alguns estão trabalhando por outros. O trabalho, assim como a riqueza, deveria ser distribuído igualmente a todos. O trabalho, como vê em seu tempo, é apropriado por um exército de inúteis: clero, nobreza militar, comerciantes, proprietários de terra, donos de empresa, funcionários do estado e outros que estariam parasitando a sociedade e impedindo a felicidade comum. Nos cálculos de More, se toda essa casta de parasitas se também trabalhassem em algo produtivo, como na indústria ou agricultura, haveria suprimento suficiente para todas as necessidades da sociedade, assim como é descrito em Utopia. A miséria da qual More fala não é a dos mendigos das cidades medievais, é aquela resultado da necessidade de exploração do camponês. A descrição que Thomas More faz da Inglaterra de seu tempo é tão familiar ao leitor do século XX, capitalista, que chega a ser um instrumento de possível contestação da teoria de Max Weber sobre a origem do capitalismo.
O outro ponto central, as necessidades e a felicidade coletivas predominantes às individuais, tem grande força na concepção do governo da ilha. Não é à toa que a ilha tem um governo democrático e similar ao republicano. É por conta dos governantes europeus. A visão de Thomas More dos governantes, ao contrário do que se pode pensar está longe de ser ingênua. Ele sabia muito bem com quem estava tratando. A sensação familiar que alguns sentem ao ler a descrição que este faz dos costumes e práticas dos governantes europeus não é casual. Aqueles que já leram O Príncipe de Maquiavel podem notar que as atitudes que More indica como comuns entre os reis, são quase todas as que o italiano receita ao bom governante. Temos aí uma diferença de concepções no método de alcançar um bom governo. Para More, este deveria ter origem no povo, e ser calcado na sabedoria dos mais velhos. Para Maquiavel seria encontrado nos homens que o merecessem, e que soubessem retirar as lições do mundo, da experiência. Mas ao contrário deste, More acreditava que não seria sábio confiar tudo às mãos de um homem só que não estivesse ligado ao povo, não com tudo que já conhecia dos príncipes e dos reis. Estes e seus conselheiros, não estariam interessados em uma política verdadeiramente direcionada ao bem comum da sociedade. Estariam muito mais preocupados com seus próprios interesses, com suas próprias possibilidades de tirar vantagem da situação com a qual estariam lidando. Thomas More estava criticando o poder de uma classe militar, apenas preocupada com seus interesses, com seus privilégios, alimentados exatamente pela guerra – outro grande mal eleito por More, por sua vez também derivado da desigualdade material. Ao identificar nos governantes hereditários e intocáveis essa falta de ligação com os bem comum, criticava também o direito divino, o poder legitimado pela tradição. É natural então a defesa que faz da democracia como forma de governo. E é uma das componentes mais importantes de seu discurso a deslegitimação que faz ao poder real e ao poder da aristocracia. Fica extremamente claro para ele que o único governante legítimo é aquele escolhido pelos cidadãos. É muito forte a necessidade de um governo democrático, eleito e diretamente ligado aos interesses do povo. Por sinal, esse povo do qual fala não é um pequeno grupo restrito, não é um recurso ideológico (e demagogo) que visa tornar os interesses de alguns poucos os de todos. Entende por povo ou cidadão, todo e qualquer membro da comunidade. Na sua visão de sociedade igualitária em todos os sentidos, são muito poucos os que não são considerados membros dela. Mesmo assim, ainda vemos uma espécie de clivagem política, não econômica ou hereditária, mas de idade e de gênero, e claro, no caso dos escravos.
Os mais velhos, e por conseqüência para More, os mais sábios, teriam mais capacidade de decidir o que é melhor para todos. Em Utopia, as decisões políticas são feitas com base em uma estrutura que tem como as células básicas a divisão em famílias. Cada família é comandada pelo homem mais velho, e um certo número de famílias vai eleger um magistrado regional (sifogrante ou também chamado filarca) que as governará. Cada dez destes obedece a um magistrado superior, também eleito (protofilaraca ou traníboras), e os sifograntes ainda elegem um príncipe. Os traníboras e o príncipe reunidos são o senado, e deliberam a política da ilha. Mesmo assim há um rígido controle da base popular sobre o que o senado pode fazer. Com relação às mulheres nada é dito do papel delas na política, mas fica subentendido que esse papel está reservado aos homens. Por outro lado, a participação das mulheres na sociedade é bem igualitária, na educação, no treinamento militar e na divisão do trabalho. Por exemplo, mesmo o casamento sendo rigidamente controlado de acordo com as necessidades coletivas, ambos os noivos deverão estar de acordo com o matrimônio. Da mesma forma, o divórcio é tão restrito ao homem quanto à mulher (daí a necessidade de escolher bem os cônjuges antes).
Os escravos de Utopia não são entendidos como parte do povo. A eles é reservado o papel de párias, e que executam os trabalhos mais duros e indignos. Mas esse papel é reservado a eles não por serem estrangeiros ou por hereditariedade, e sim por serem criminosos ou soldados estrangeiros vencidos e poupados. E mesmo assim, é muito simples deixar de ser escravo. Os filhos de um escravo não são escravos, o criminoso verdadeiramente arrependido também não, assim como o soldado estrangeiro que absorver a cultura e costumes da ilha. Aliás, embora afirme que existiriam em grande número, quase nada parece sobrar para eles fazerem na dinâmica da sociedade utópica. Da mesma forma, o papel dos escravos na sociedade de More não é o mesmo da democracia clássica grega. A economia interna desta era escravista. A força de trabalho fundamental de Utopia é a do homem livre, a do cidadão de Utopia. Essa força de trabalho, entretanto, é rigidamente controlada pelo governo. Os magistrados são responsáveis por redirecionar os cidadãos para desempenhar as funções necessárias à sociedade. O indivíduo baseado em talento e gosto pessoal pode escolher sua profissão, mas apenas se as necessidades da sociedade estiverem de acordo. Ou seja, a divisão de trabalho é diretamente subordinada ao interesse coletivo. Os interesses de um devem ser alcançados, mas relacionados ao de todos. E há alguns serviços essenciais como a agricultura em que todos devem desempenhar. Todo ano cada família deve mandar um de seus membros para as plantações, de forma rotativa. Eventualmente se um membro gosta de trabalhar no campo, ele pode estender sua estadia.
O alfabeto Utopiano, segundo Peter Giles, apresenta bases latinas e gregas.
Esse rígido controle é encontrado também nos costumes. More entendeu que uma sociedade tão diferente no funcionamento e nas suas raízes deveria ter também uma cultura e ética totalmente diferente, e tentou encontrar os pontos onde os costumes contribuiriam para a manutenção dessa sociedade. Aqui diverge de Maquiavel. Esse acredita numa dupla moral. More acredita que a vida pública deve estar refletida na vida privada. Esse rígido controle da cultura e dos costumes está calcado no condicionamento, isto é à repetição intensa das lições, mensagens subliminares durante a educação e simbolismo. Há um quê de Behaviorismo na educação em Utopia. Na sociedade utópica, a educação é oferecida a todos, e cultivada com esmero. Thomas More sabia da necessidade de educar a todos. A igualdade não se sustentaria com um bando de ignorantes e alguns poucos cultos que logo se tornariam uma espécie de privilegiados. A defesa dos direitos coletivos feita por todos só poderia ser feita com uma difusão do conhecimento igual também. Como exemplo temos a maneira como encaram a moeda e a guerra. Para os utopianos a ganância e os metais preciosos são algo desprezível, assim desde cedo o homem vai ser educado a desprezar essa coisas. Um inventivo recurso de condicionamento seria utilizado pelos utopianos para conseguir este desprezo por metais raros. Seriam utilizados para fazer as algemas e adereços dos escravos e os vasos sanitários. Desde criança o habitante de Utopia aprenderia a desprezar tais metais. Da mesma forma, a guerra deve ser encarada sempre como último recurso. Embora todo cidadão receba treinamento militar, este só deve ser utilizado em caso de invasão da ilha por forças estrangeiras. Pode-se dizer que as estratégias de guerra de Utopia seriam então brilhantemente lógicas dentro da sua dinâmica.
De acordo com More, o trabalho coletivo resultaria numa produção muito acima da necessária para a manutenção da sociedade. Parte pode ser reservado para eventualidades, outra parte doada para os pobres de alguma nação vizinha. Uma outra parte é reservada para ser vendida a nações vizinhas que queiram comprar. O dinheiro resultante não teria utilidade se não houvessem nações gananciosas e belicosas. Mas como Utopia é uma ilha de paz e igualdade num mundo de violência e exploração, esse ouro vai ser utilizado para contratar exércitos mercenários para proteger a ilha, sempre fora das fronteiras, e subornar os exércitos adversários. Recurso que não pode ser utilizado contra o utopiano comum pois estes não vem valor nenhum na riqueza individual. E se algum trair Utopia, com certeza seria punido. More não estava sendo ingênuo, muito pelo contrário. Seu raciocínio, com ressalvas aos pressupostos, pouco calcados no mundo real, de que a sociedade auto-suficiente poderia produzir o necessário para acumular o suficiente para subsistência, os subornos e as tropas mercenárias, era perfeito.
A predominância das necessidades coletivas são baseadas numa filosofia do prazer. Os conceitos de prazer e felicidade são essenciais na construção da Utopia. É pensando em felicidade e nos prazeres que More vai dar o sentido e razão de existência dessa sociedade. Todo cidadão de Utopia busca o prazer. Mas o seu prazer não pode resultar no prejuízo, num mal a outrem. A filosofia de Utopia constrói toda uma lógica da busca pelo prazer, extremamente lúcida por sinal, enumerando uma hierarquia e classificando os prazeres físicos, intelectuais e espirituais. A ética e a religião também são ligadas à busca pelo prazer e felicidade. Alguns poucos poderiam não buscar o prazer sem serem considerados tolos, porém estes seriam pessoas extremamente religiosas ou santas que se absteriam da felicidade em prol do bem comum, uma espécie de mártires. Mas estes indivíduos seriam raros. O deus dos utopianos, que More faz questão de frisar, seria muito parecido com o cristão, antes de tudo quer que seus crentes busquem o prazer e não prejudiquem ao próximo. Este seria o Deus onipotente, universal, mas em utopia as pessoas também poderiam seguir outras religiões restritas, e cultos variados, ou seja, o autor defendia idéias de liberdade e tolerância religiosas. Seriam pequenas idiossincrasias sem a menor importância, até mesmo bem-vindas, enquanto o culto a esses deuses não ferisse os princípios básicos da sociedade. O bem comum, a igualdade, a ausência de orgulho mesquinho e a busca pelo prazer. Nessa sociedade a felicidade tem de ser pensada coletivamente. Um mundo de igualdade não teria sentido se não fosse pensado com o intuito de alcançar a felicidade. Essa busca pelo prazer é o que vai dar uma razão ideológica para essa sociedade igualitária mas rigidamente controlada. More entendeu como dialética a relação entre igualdade e liberdade e optou pela igualdade. Tendo em vista alcançar o bem comum e a felicidade coletiva, ao mesmo tempo objetivos e instrumentos ideológicos para a construção e manutenção dessa sociedade, viu na igualdade material a estrutura básica para essa sociedade, entretanto teve dificuldades em inserir liberdades individuais nesse universo. Esse mesmo conflito aparece em Admirável mundo novo, onde a sociedade ideal seguiu a mesma opção de Thomas More, porém o autor do livro, Aldous Huxley, a apresenta de forma extremamente crítica.
Thomas More escreveu uma obra onde descreve uma sociedade que entende como melhor que aquela onde vivia. Isso todos sabem. O próprio nome da ilha acaba corroborando essa concepção geral de que Utopia (que vem do grego, ou-topos: lugar nenhum) é considerada como o local onde se encontraria a sociedade ideal, e sendo ideal, inalcançável. Mas embora o nome da ilha indique que esta exista em um lugar nenhum, ela é situada geograficamente na América, no novo mundo. Ela não é colocada num lugar imaginário, num lugar espiritual, ou num lugar perdido. A ilha existiria no novo continente, sendo então possível fazer a viagem para lá. E é exatamente o que fez Rafael Hitlodeu, o viajante do qual supostamente More ouviu falar da ilha. Por sinal, idoso e sábio, Rafael Hitlodeu representa o rei filósofo de Platão. Essa localização no Novo Mundo está ligada a idéia da esperança de um novo tempo, de uma nova era para o homem, que é o Renascimento e o Humanismo. A descoberta de uma nova terra trazia consigo uma nova chance, isto é, para os insatisfeitos com o mundo europeu, a possibilidade tanto de encontrar uma nova civilização melhor, quanto um novo lugar para experimentar. O Humanismo do autor estava fazendo um grande rompimento com a idade média, não estava interessado na promessa de uma recompensa no além, no espírito, está preocupado com o mundo físico, com o mundo temporal. Um dos maiores méritos do livro Thomas More foi deslocar o Paraíso para o mundo real. |
As nítidas influências de Platão nos escritos de More também nos levam a esse raciocínio. Não é difícil perceber que a Republica de Platão foi crucial para a criação dessa sociedade prefeita, várias e várias vezes More cita os escritos do filósofo grego. A concepção de Utopia deve muito as idéias deste pensador, e as conseqüências do livro também. O conceito de idealização é geralmente ligado a algo perfeito e inalcançável que está longe do mundo real. É costume então chegar à conclusão de que de nada adianta pensar num ideal pois este nunca irá se cristalizar na realidade. O ideal para More não é encarado dessa maneira, para ele o ideal está muito mais próximo do conceito matemático de limite (que Newton e Leibniz desenvolveriam só no século XVIII). O limite pode ser entendido como uma ferramenta que permite descobrir um ponto não existente de uma função, em um dado universo. Isso é feito através da análise da tendência dessa função, à medida em que ela se aproxima cada vez mais desse ponto. Ou seja, o limite é para onde algo tende sem nunca chegar lá, mas cada vez mais próximo, sendo que em certo momento é tão pequena a diferença que é como se fosse o lá. É dessa forma que More entende a idealização. Não a encara num sentido de objeto inalcançável, mas como uma meta da qual devemos nos aproximar o máximo possível. Como se pode ver nas posturas políticas que deixa transparecer, principalmente na primeira parte do livro, Thomas More está interessadíssimo na aplicação de suas idéias. Todo o debate entre More e Rafael Hitlodeu na primeira parte do livro é conduzido de maneira subliminar por este intuito.
| Constantemente é sugerido por More que Hitlodeu compartilhe sua sabedoria com os reis, fazendo parte de algum Conselho de Estado. Este sempre nega e argumenta com base na crença (experiência ?) de que seus conselhos nunca seriam ouvidos. Hitlodeu, ou melhor More acredita que uma mudança na sociedade não poderá ser feita a partir da vontade das classe no poder num gesto de filantropia. Ao contrário do que acontece em Utopia, um mundo ideal onde um grande patrono, Utopos, reformou a ilha e a tornou na sociedade perfeita, More sabia o que aconteceu com Platão. More queria que a jornada em direção a Utopia fosse feita pelos que estavam insatisfeitos com o mundo como era. A mudança teria de ser feita de baixo, não pelo povo, mas pelos sábios conduzindo o povo, sem a ajuda dos poderosos. More tinha bem claro que os beneficiários da sociedade em que vivia nunca iriam querer mudar para uma sociedade igualitária e iriam se opor a qualquer tentativa de fazê-lo. Uma mudança no mundo deveria ser preparada cuidadosamente, e divulgada secretamente pelos sábios que a encabeçariam, até que chegasse o momento de bradá-la para os inimigos. Essa é a mensagem que passa várias vezes Hitlodeu-More, parafraseando Mateus: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai-o em voz alta e abertamente. |